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Dados, a nova moeda na África

Por Eunice Mwaura, Vice Versa Global

“É importante manter e observar a ética no mapeamento, coleta e empacotamento de dados. Esse tem se demonstrado um desafio e tanto. Por volta de 30% dos pesquisadores e da academia – apenas isso – retornam às comunidades pesquisadas para confirmar e compartilhar dados coletados nesses lugares”. Para encarar de frente e entender como lidar com esta questão, conversamos com Nicera Wanjiru, uma jovem ativista que atua pela transformação de sua comunidade na defesa do direito ao controle comunitário de seus próprios dados e informações.

Nossa história começa em Kibera, sem dúvida o maior assentamento informal da África em termos de população por quilômetro quadrado. Tal cenário a torna suscetível a problemas como violência sexual, violência de gênero, crime e consumo abusivo de drogas. Com as necessidades mais básicas como água e saneamento sendo consideradas privilégio, Nicera procura superar isso por meio de um planejamento adequado. Ela criou uma fundação, a Community Mappers, que utiliza dados em prol da melhoria da qualidade de vida entre os membros de sua comunidade.

Os dados e o processo de mapeamento

Nos encontramos em Kibera por volta das 14h, em um mercadinho da comunidade, como combinado. Enquanto caminhávamos por um trecho longo de becos e quarteirões residenciais, conversávamos. “É aqui que nos reunimos todas as quintas-feiras”, disse ela. “Antes de sair para a coleta de dados, fazemos um mapeamento para identificarmos as regiões com os problemas mais graves em nossa comunidade. Este rascunho inicial (ela aponta para um quadro branco) representa as áreas em Kibera que mais sofrem com criminalidade, violência sexual e de gênero desenfreadas. Depois de identifica-las, conduzimos uma pesquisa ao longo das áreas mapeadas. Por fim, compilamos os achados”.

“É parte de nossa filosofia a prática de conferir os achados com a comunidade antes de publicá-los”. Uma vez revisados, nossos dados são abertos tanto para o público quanto para o governo. Eu estudei e me profissionalizei em coleta de dados geoespaciais e acumulei 10 anos de experiência na área. Isso abriu meus olhos para as carências que existem aqui e que sei que só podem ser superadas por meio da utilização dos dados. Em 2020 fundei a Community Mappers, com o objetivo de capacitar minha comunidade na coleta e utilização de dados para reivindicar suas necessidades. Como sobrevivente de violência de gênero, eu sabia que poderia mudar minha comunidade e influenciar os jovens a partir da minha experiência”. Nicera Wanjiru

De que forma os dados são a nova moeda?

“O que você quer dizer quando afirma que os dados são a nova moeda?” Eu a pergunto. “Quando afirmo isso, quero dizer que as comunidades não podem ser desenvolvidas sem o trabalho com dados e mapeamento. Graças aos dados temos sido bem-sucedidos em pressionar as autoridades políticas para o atendimento às nossas necessidades básicas, como escolas, água e saneamento. Um exemplo do papel que os dados têm desempenhado em Kibera é o que tem ocorrido durante esse período de COVID”, acrescenta. “A atual pandemia tem tido um impacto muito grande na comunidade. São muitas as que pessoas perderam seus empregos, o que as torna, junto com suas famílias, mais vulneráveis a diversos problemas sociais, dentre os quais a fome.”

 

“Eu me lembro claramente de quando houve um tumulto com pisoteamento durante uma distribuição de alimentos por um benfeitor. Muitas pessoas sofreram ferimentos graves. Mulheres e crianças, chorando, ofegantes, buscando o que podia ser a única refeição que teriam em muito tempo. Muita gente bate aqui na porta pedindo ajuda para suprir o básico quase todo dia. Isso nos motivou a realizar uma pesquisa de avaliação das necessidades. Tenho orgulho de dizer que conseguimos arrecadar alimentos para 250 famílias após a publicação de nossos dados”, diz ela. “É impossível fazer pressão política pelo desenvolvimento sem evidência da escassez. Somente através do mapeamento e dos dados que somos capazes de identificar estas carências”.

Laboratórios de SIG no Quênia

De acordo com a pesquisa do Escritório Nacional de Estatísticas do Quênia (KNBS), apenas 5 dos 47 condados que compõem administrativamente o país estabeleceram laboratórios de SIG (Sistema de Informação Geográfica). Alguns condados se encontram em fase de instalação de unidades, e quatro deles não apenas não os têm como sequer consideram fazê-lo. Essa é uma triste estatística, na medida em que o SIG é uma técnica em franca expansão e evolução que se tornou uma ferramenta essencial no planejamento. Ele pode determinar e atender às necessidades do planejamento e suprir a lacuna entre o presente e o futuro que queremos. A legislação necessária já foi aprovada há muito tempo, mas os recursos de sustentação – hardware, software, recursos humanos e dados – ainda são escassos.

O investimento em estruturas SIG nos condados deve se contemplar todos os seus quatro componentes, em vez de apenas se voltar para a aquisição de hardware. O fato de que a maioria dos condados não tem capacidade para adquirir e muito menos para utilizar esta tecnologia tem levado os governos locais à contratação de serviços terceirizados. Na prática, isto significa que os dados coletados não têm garantias. Parcerias são a chave do sucesso neste cenário, onde, por exemplo, os condados podem oferecer oportunidades de estágio, e as universidades realizar capacitação de seus funcionários.

Parceria entre os pesquisadores e a comunidade

“É importante manter e observar a ética no mapeamento, coleta e empacotamento de dados. Esse tem se demonstrado um desafio e tanto. Por volta de 30% dos pesquisadores e da academia – apenas isso – retornam às comunidades pesquisadas para confirmar e compartilhar dados coletados nesses lugares. Quando estas descobertas não são verificadas ou compartilhadas com as comunidades envolvidas, é impossível identificar problemas nos dados. Isso me faz refletir sobre o papel dos pesquisadores e do meio acadêmico no desenvolvimento de pesquisas e das comunidades. De que maneira pode o público confiar, apoiar e participar de pesquisas se o processo não for transparente?” pondera.

“Surpreendentemente, pesquisadores contratam coletores de dados sem sequer informá-los que uso darão aos dados. Ontem eu organizei uma reunião com jovens mulheres que trouxeram questões preocupantes. Elas disseram que sempre que ouvem alguém bater à porta têm quase certeza de que é mais uma pessoa que veio apenas fazer perguntas. Algumas até as expulsam. Já está na hora de pesquisadores e academia valorizarem a presença da comunidade. Elas existem para serem ouvidas, não para serem usados”.

O futuro é promissor

“Mas nem tudo é trevas e destruição, pois os ventos da mudança estão soprando de forma gradual, mas segura. Através de parcerias com ONGs, somos capazes de praticar uma abordagem bottom-up (de baixo para cima) na coleta e empacotamento dos dados”. O engajamento comunitário é promovido durante este processo, com a comunidade sendo convidada a tomar parte da pesquisa. Também conseguimos compartilhar uma porção significativa dos dados com o governo local, que se mostra agradecido e responsivo. O meio geoespacial também se tem se aberto e se mostrado mais acolhedor às pessoas oriundas de assentamentos informais”.

“Nunca pensei que seria palestrante em uma das plataformas internacionais geoespaciais realizadas na Romênia em 2019. Através destes fóruns, pude representar e lutar por uma sociedade melhor. Anseio pelo dia em que as comunidades aprenderão a coletar e possuir seus próprios dados. Um dia em que irão se posicionar frente a organizações externas, tomando a dianteira para lhes dizer o que querem, e não apenas ter suas necessidades determinadas por outros. Nós também colaboramos com pesquisadores e academia em um esforço para melhorar a qualidade de suas pesquisas e a qualidade de vida de minha comunidade”, conclui.

Para mais informações: www.communitymappers.com

Você pode seguir Nicera no twitter via #CommunityMapper ou alcançá-la através de [email protected]

Fotos: Beryl Achieng

Originalmente publicado em: https://viceversaonline.nl/2021/03/03/data-the-new-currency-in-africa/

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